quarta-feira, 27 de junho de 2007

A minha figura de parvo


Numa outra versão acabava de viver uma velha história dos anos 70 que se contava do senhor Silva, relojoeiro da Chamusca. Depois de pôr um relógio a trabalhar apenas com uma assopradela, fora da vista do cliente, o relojoeiro pediu um dinheirão pelo trabalho, confessando com vaidade a técnica usada na reparação. Chocado com o preço de uma assopradela, o dono do relógio lá acabou por pagar os quinhentos escudos depois de ouvir o mestre Silva explicar que o dinheiro que ia receber não era pela assopradela mas pelo que ao relojoeiro tinha custado aprender onde soprar.A câmara de vídeo avariou nas mãos do Pedro Oliveira. Sem saber como resolver a avaria a máquina cirandou de mão em mão durante duas semanas até chegar ao meu gabinete com a sentença lida: avariou por má utilização e o conserto fica mais caro que comprar uma nova.
Nas minhas voltinhas de trabalho por Lisboa resolvi incluir no roteiro uma visita a uma daquelas lojas onde ainda se atende o cliente como antigamente. Levei a máquina e pedi ajuda. Entre dois dedos de conversa ao balcão o senhor António devolveu-me a câmara de vídeo a trabalhar e como nova. Pelo meio de um atendimento que durou penas cinco minutos ficou um talão de conserto por preencher e o aviso para que não utilizasse determinadas marcas de cassetes e cumprisse, como um ritual, a forma de mexer em certos maquinismos. Como sou ignorante na matéria ouvi tudo o que tinha a ouvir e fingi que estava a dar boa conta do recado: de verdade nunca usei uma máquina de vídeo.
No caso da câmara de vídeo não tive que pagar nada. Mas os meus sentidos foram abalados pelas palavras do senhor António quando me devolvia a máquina e procurava um saco debaixo do balcão. Como não achou disse-me com um sorriso meio a sério meio a brincar: meta lá isso outra fez nesse saco horroroso onde trouxe a câmara e não diga que vai daqui.
O saco era vermelho e tinha escrito a letras gordas a marca Worten.
Há mais de uma semana que ando a magicar na minha figura, em Lisboa, com um saco da Worten na mão a fazer publicidade a uma marca e a um determinado tipo de comércio que também abomino e que vai acabando pouco a pouco com os senhores antónios do comércio alternativo que nos salvam nas horas aflitas.
Moral da história: antes de escrever esta crónica contei este episódio a um amigo: resposta dele: tu és cá uma peça! Quem é que no teu lugar se sujeitava a toda essa trabalheira por causa de uns míseros dois mil euros? Fiquei esclarecido quanto à figura de parvo que ainda faço todos os dias e que começa logo pela manhã quando me levanto da cama com um salto para o soalho.

quarta-feira, 20 de junho de 2007

Vale a pena ter memória


Esta semana, numa rápida leitura pelo Jornal do Fundão, que leio regularmente como leio outros jornais de referência, tive oportunidade de ler excertos de um texto do director e sobrinho de António Paulouro, o fundador do jornal, a propósito da entrega do prémio literário que foi criado com o seu nome. Diz Fernando Paulouro Neves que “a oito anos do centenário do nascimento de António Paulouro está na hora de se começar a pensar nessa data como forma de edificar um acontecimento nacional que faça luz sobre aquilo que foi a sua exemplaridade cívica e cultural (: ) sobre a sua capacidade de se adiantar ao sonho de uma terra, de uma região e de um país onde a felicidade fosse possível”.
O texto está cheio de palavras bonitas e de homenagem a António Paulouro mas o que me interessa trazer aqui, pelas palavras, é a defesa da memória de uma figura da região para que ela sirva de exemplo. E que a defesa surja de uma pessoa que trabalhou com ele dezenas de anos e com ele aprendeu tudo o que tinha para aprender. O que me faz escrever este texto é a admiração de ver alguém no lugar de outra pessoa a puxar pela memória dos homens para que não esqueçam quem ele substituiu e o trabalho que lhe foi legado.
Não conheço pessoalmente o actual director do Jornal do Fundão mas ouvi falar dele muitas vezes, nem sempre bem, na altura em que conversava com António Paulouro sobre os nossos jornais e o futuro da imprensa regional.
Sem querer, talvez porque o apanhei numa altura difícil da vida do seu jornal, uma vida difícil que durou muitos anos, António Paulouro fez-me confidências e partilhou comigo segredos sobre a gestão de um jornal que ainda hoje me servem de guia. Guardo dele ensinamentos que ainda hoje aplico na gestão da minha empresa e na relação com os meus colegas de trabalho. Sei de erros que ele cometeu, e de que se arrependeu, e pagou caro, que por os ter partilhado comigo me livraram de armadilhadas em que toda a gente cai e, às vezes, nunca mais se levanta.
Do actual director do Jornal do Fundão, que na altura já era o braço direito de António Paulouro, ouvi falar como se fala de um jornalista a quem se entrega o futuro de um jornal. Umas vezes com aquela esperança que sempre se tem nos da nossa família, outras com aquela desilusão e raiva por sabermos que quem está mais próximo de nós mais está acomodado. Hoje não tenho dúvidas que António Paulouro teve o sobrinho que merecia. E o jornalista que ele sonhava formar para que o Jornal do Fundão continuasse a ser “a memória de milhões de palavras escritas ao lume da velha inquietação em favor da condição humana”.

quarta-feira, 13 de junho de 2007

O crime sem sangue pelo meio


Vem tudo isto a propósito de um estudo da Marktest divulgado na passada semana sobre o grau de conhecimento dos portugueses relativamente ao nome dos presidentes de junta de freguesia. Diz o estudo que uma grande maioria dos portugueses ignora o nome do presidente da sua junta de freguesia.Gosto da actividade política. Entendo que é uma disciplina da cultura mas uma disciplina valorosa. Já gosto menos dos políticos. Na minha opinião a política está cheia de caciques. Cheia de gente que não sabe fazer mais nada que conspirar, sacanear, apadrinhar e governar mal, nomeadamente gerindo muitas vezes de forma a defender mais interesses próprios ou privados que o interesse público.
Conheço muitos políticos que são verdadeiramente analfabetos. Não no verdadeiro sentido da palavra mas no que concerne à defesa da coisa pública. Esta semana recebi um telefonema de um político que dois dias antes me tinha espetado uma facadinha nas costas. E falou comigo como se fosse meu companheiro de estrada. Tenho montes de histórias para contar de políticos que não sabem fazer mais nada que conspirar. E praticar o crime embora sem sangue pelo meio. E sem remorsos na consciência.
Como é evidente os números são maiores quanto mais numerosas são as áreas populacionais. A nível nacional a percentagem dos portugueses que disse desconhecer o nome do presidente da sua freguesia é da ordem dos 37%. Mas se falarmos de vilas do interior o número já desce para os cerca de 10 %. Na grande Lisboa a percentagem é de meio por meio.
Talvez porque sempre vi O MIRANTE como um jornal das freguesias, um grande jornal feito a pensar nas pessoas que têm menos voz, nos cidadãos que vivem mais longe do poder, tenho pelos presidentes de junta uma admiração maior e mais sincera. Se um dia voltasse à política como na minha juventude, o que não é provável, gostaria que fosse numa junta de freguesia. Para poder ajudar a fazer um trabalho honesto e limpo como me parece que faz o presidente da Junta de Freguesia de Vila Franca de Xira, o socialista José Fidalgo. Vejo nele o autarca exemplar. O político que para governar não precisa de conhecer construtores civis ou especuladores imobiliários. O presidente de junta que não veste a pele do desgraçadinho mas também não olha de cima para o cidadão que bate à sua porta. Quando falo com ele não sinto que estou a falar com o Poder. Gosto das pessoas que servem a política e não estão na política para se servirem.

quarta-feira, 6 de junho de 2007

Depois de perder os olhos numa bela imagem…


Antes de acabar os cerca de cem metros do meu percurso a pé vi muito gente junta e tentei saber o que se passava. A conversa era sobre o Manuel Emídio. Tinha acabado de morrer no hospital de Santarém. E alguém olhava ao longe um dos filhos que daí a pouco já estava no meio do grupo de mulheres a confirmar a morte do pai. Tinha 82 anos e sempre que olhava para ele lembrava-me de uma mulher baixa e gordinha (Rosa Chora) que foi casada com ele uma vida inteira e que me tratava por primo e me beijava e tentava abraçar como nem os irmãos se abraçam uns aos outros.Na última sexta-feira, logo pela manhã, ao sair de casa, a porta do meu carro não obedeceu às ordens da chave electrónica. Andei cem metros a pé na minha vila e encontrei a Virgínia com quem conversei no meio da rua durante 15 minutos sobre o facto do José Galinha continuar algaliado depois de tantos anos e ninguém a ajudar a encontrar uma solução para aquele sofrimento. Médico para lá e médico para cá, uma pessoa fica doente só de ouvir contar como certas vidas, a partir de determinadas idades, duram anos e anos em condições que cegam e destroem a alma. Sabendo-se, muitas vezes, que a falta de soluções para tanto sofrimento está na falta de dinheiro e influência para recorrer a bons médicos e a boas clínicas.
A meio do caminho parei outra vez para uma conversa de cinco minutos e ouvi a história do António José Lopes (Guerra) que tinha morrido no dia anterior, depois de quase duas dezenas de anos de sofrimento por causa de uma doença congénita. Soube que as autoridades exigiram uma autópsia antes do corpo descer à terra e fiquei embasbacado. E dei corda a uma conversa que sei que corre na vila como o vento (ver notícia nesta edição) e que espelha a desconfiança que mina cada vez mais a relação entre as pessoas. Como se o nosso mundo fosse todo igual aquele que todos os dias nos entra em casa nos noticiários das televisões.
Quando cheguei ao meu destino, depois de perder os olhos numa bela imagem que sempre se atravessa no meu caminho, encontrei a Maria Domicilia e o Francisco Nalha, que também já vão na casa dos 80 e sempre que me vêm, principalmente ela, dá-me um abraço e um beijo como a um neto. E fala-me do tempo em que toda a gente ia para a Azambuja fazer searas de tomate, e eu também ia com os meus pais descalço e com as calças rotas no cu.
Quando voltei ao carro tinha passado uma hora. E já não tenho a certeza se não foi nesse dia que, antes de abrir a porta, estive à conversa com o António Lima que me disse que não há nada que não lhe aconteça (está quase cego, anda a caminho do IPO etc, etc…). Diz ele que só lhe falta uns cornos porque teve a sorte de casar com uma mulher séria.