quarta-feira, 17 de dezembro de 2008

Crónica de uma noite de jazz


Estou há duas horas no cimo do morro Tavares Basto, na cidade do Rio de Janeiro, dentro de um espaço de arte e música de um ex-jornalista inglês reformado. Vim com gente amiga. Uma vez por mês o Ben abre a porta da sua casa aos amigos e conhecidos. O meu grupo é de gente ligada ao cinema e à literatura. Depois das apresentações da praxe, jornalista para ali, editor para acolá, amigo de fulano e sicrano, os meus novos amigos não descansam enquanto não percebem quem sou e o que valho.
Como se eu não estivesse ali, e não falasse a mesma língua, ouço-os pelo canto da orelha a perguntarem o que faço, se estou em férias ou em trabalho, onde nos conhecemos, em que lugar da cidade estou hospedado, se conheço outras cidades do Brasil, enfim, uma lista de perguntas a meu respeito que não me são estranhas de outros encontros noutras cidades e noutros lugares com gente do mesmo meio.
Português no Brasil é sinónimo de piada. É verdade que os brasileiros têm um certo fascínio por Portugal mas as honras são devidas ao espaço europeu onde nos integramos. Mesmo para aqueles brasileiros que já visitaram o nosso país, e andaram a correr entre Lisboa, Sintra, Cascais e Fátima, Portugal continua a ser para eles um país de homens e mulheres baixinhos, vestidos de preto, com bigode, que educam os filhos à paulada e escarram para o chão.
Como não sou taxista, nem padeiro, nem barbeiro, os meus novos amigos querem ter a certeza de que eu estou ao nível deles e não desistem de me observar como se eu fosse um marciano.
Desta vez o teste durou cerca de duas horas. Terei passado no exame mais facilmente do que seria previsível devido ao meu amigo Bruno. Tinha 24 anos quando aportei ali na baía de Guanabara, diz, apontando com o dedo lá de cima do morro com a cidade aos nossos pés. Vinha de Itália, num barco de mercadorias, à procura de fazer uma carreira no cinema, e com tudo isto já lá vão 37 anos.
Enquanto os brasileiros, apesar da camaradagem, não largavam o tema dos descobrimentos, o desencanto com Portugal, a grandeza do Brasil e a vaidade das suas vidinhas, o Bruno vai contando como estão a correr as filmagens dos Capitães da Areia, uma adaptação do famoso livro de Jorge Amado.
Saímos do bar/estalagem por volta das quatro da manhã e atravessamos a pé o morro Tavares Basto como se estivéssemos a caminhar no Leblon a meio da tarde. A minha alma está parva, vou dizendo baixinho com os olhos fixos, lá do alto, na baía de Guanabara, enquanto o carro faz as curvas. A voz do Ben e dos seus saxofonistas ficou entre paredes. Escrito nas estrelas estão estas palavras atribuídas ao padre português Fernão Cardim (fins do século XVI): dentro da barra tem uma baía que bem parece que a pintou o supremo pintor arquitecto do mundo, Deus Nosso Senhor.

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