quarta-feira, 21 de janeiro de 2009

Gente sem rosto


Uma das minhas melhores formas de diversão é ouvir dizer mal, ouvir berrar contra o sistema, contra o governo, contra os políticos, contra tudo e contra todos. Julgo ter o privilégio de saber ouvir tanto como sei calar quando ouço. Ninguém sabe dizer tão mal como o nosso médico, o nosso barbeiro, o nosso fisioterapeuta, o dono do café onde vamos beber a bica todos os dias, o nosso parceiro de sueca, o nosso adversário do snooker, o nosso amigo e colega de profissão. Fico de boca aberta a deliciar-me com as criticas ao sistema que ouço nas mesas repleta de reformados à hora do almoço, à volta das mesas onde quatro teimosos batem os nós dos dedos jogando as cartas;
O tipo é um cabrão; o gajo quer é meter a mão na massa; isto está bom é para eles e para as famílias deles; se fosse eu que mandasse punha a tropa na rua; para o ano fecho a porta e vou pedir trabalho ao presidente da câmara; os cabrões é que deviam governar a casa deles com o que eu ganho da reforma.
Falta-me coragem para transcrever aqui o vocabulário obsceno destas conversas da treta que põem tudo e todos em causa neste tempo de vacas magras. Se alguém inventasse uma forma de aproveitar a energia da fala, dos que passam a vida a berrar contra tudo e contra todos, talvez tivéssemos resolvido o problema das energias alternativas, o problema da nossa dependência do petróleo.


Há um tempo atrás fui assaltado em plena cidade de Madrid. Roubaram-me a carteira com todos os documentos e com uma mão cheia de euros. Foi um golpe de mestre. Não dei por nada. Não senti népia. O que sei é que a minha carteira voou da mala como um pássaro muda de beiral.
Quando dei por falta da carteira lembrei-me de um estranho encontrão de ombros minutos antes. Depois sentei-me num banco de jardim, baixei os braços e fechei os meus olhos tristes. Alguns minutos depois estava a valorizar a astúcia do ladrão, a desejar conhece-lo para perceber como é que ele conseguiu o que me parecia impossível. Queria conhecer a arte do golpe. E deixava-me roubar outra vez só para saber se o gatuno é do género daqueles que vai almoçar ou jantar ao mesmo restaurante que eu, tem uma vida tão boa ou melhor do que a minha, ou, ao contrário, é um pobre diabo que conforma ganha conforme gasta, e nem sequer tem filhos para levar à escola.
Acabei o dia a fazer queixa na polícia sabendo que tinha proporcionado um bom dia de trabalho a um gatuno que não usa pistola nem arma branca para roubar. E o mais surpreendente ainda estava para me acontecer. Um mês depois do roubo recebi uma carta, em espanhol, com o carimbo de Cadiz, onde o ladrão goza comigo, dizendo-me que tinha achado uns cartões com a minha cara e a minha morada e que um dia destes passava por Santarém para me visitar e os entregar em mão.
Há pessoas que se atravessam na nossa vida que deixam marcas que nunca se apagam. Mesmo que nunca lhe tenhamos visto o rosto.

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