quarta-feira, 24 de outubro de 2007

Memórias quase neo-realistas


Na inauguração do museu do neo-realismo, ao ouvir os discursos da praxe, não senti uma ponta de comoção. Bastou-me testemunhar, antes dos discursos, o entusiasmo sincero da presidente da câmara para me passar despercebido o cheiro do perfume da ministra da Cultura ou o sorriso de plástico do Presidente da República.Na inauguração do museu do neo-realismo revivi momentos da minha vida que me marcaram para sempre. Muitos daqueles autores famosos, que hoje são figuras de museu, ainda vivem na minha memória como se os tivesse conhecido de carne e osso.
Aprendi a escrever com José Gomes Ferreira; ganhei peito para ler um romance à luz da vela quando descobri os livros de Alves Redol; comecei a perceber melhor o mundo em que vivia quando descobri um livrinho de um autor chamado Vítor de Sá. No escritório onde trabalhei sete anos tinha tempo para ler revistas onde Antunes da Silva e Manuel da Fonseca publicavam contos e crónicas. Durante esses anos, como ajudante de guarda-livros, com a cumplicidade do chefe Joaquim Dias de Deus, passava bons momentos a ler e a exercitar a escrita sempre com um olho no burro e outro no cigano, embora soubesse que Dias de Deus era o meu anjo da guarda. Confesso, sem peso na consciência, que foi atrás dessa secretária que passei os melhores anos da minha vida. Foi lá que organizei os pensamentos; que desenhei os primeiros mapas de países imaginários; que escrevi (inspirado pela bondade do chefe e pela ruindade do que exercia a chefia) os meus primeiros textos literários.
O neo-realista com quem convivi verdadeiramente foi Álvaro Cunhal. Recordo-me dele em dois momentos únicos. O primeiro num convívio numa cooperativa de Vale de Cavalos; o outro na livraria Barata, em Lisboa, muitos anos depois, quando já estava quase cego.
Curiosamente, de todos os artistas ali representados é o que menos aprecio como autor. Quando leio os seus livros estou sempre a ver aquela figura de meter medo ao susto, de quem se podia esperar um discurso cheio de amanhãs que cantam e logo a seguir um comportamento que não permitia adivinhar-lhe um coração do lado esquerdo do peito.
Não sou doutorado em coisa nenhuma e prefiro viver o resto da minha vida a partir pedra do que a juntar-me ou a associar-me a pobres-diabos que escondem inapetência e cobardia com títulos e uma erudição verdadeiramente estéril. No meio de tantos retratos e memórias do neo-realismo senti-me outra vez ao lado do Manuel da Fonseca quando passeei com ele pelas ruas da Chamusca e o ouvi contar histórias de vida que nenhum museu do mundo pode guardar.

Sem comentários:

Enviar um comentário