quarta-feira, 14 de abril de 2010

Cumprir a tradição

Todos os dias, quando saio à porta de casa pela manhã, vejo meia dúzia de velhos conhecidos da infância sentados nos bancos do jardim a olharem para quem passa. Há mais de quatro décadas  enchia-lhes copos de vinho e cálices de aguardente ao balcão de uma taberna. Conhecia-os pelos nomes mas também pelos hábitos diários; pelos vícios; pelos desabafos sobre as suas vidas em família; pelas dificuldades em pagarem no final da semana o que mandavam apontar no rol.
Já não me vejo nos espelhos que tenho em casa para me procurar reflectido nos rostos destes homens e mulheres que se sentam nos bancos dos jardins da minha terra.
Há dias em que os olho com indiferença, com o mesmo sentimento com que recordo os mortos, ou seja, sem qualquer saudade deles. Mas há outros dias em que os procuro para lhes roubar conversa. E é nesses dias de sol que me apetece ficar sentado no banco do jardim a ouvir as vozes antigas, como a de uma respeitável senhora, que em tempos tinha fama de puta, mas que era uma pessoa tão recatada, tão recatada, que a todos tentava fazer passar a ideia de que era virgem (também eu, jovenzinho, passei pelos braços dela, mas nunca pelo meio das suas pernas).

Na última Sexta-feira Santa, ao visitar uma das igrejas por onde passa a procissão que todos os anos se realiza na minha terra, olhei para o tecto e voltei a ver pendurado pelo pescoço um rapaz da minha idade que um dia fui visitar à prisão nas Caldas da Rainha. Enforcou-se na Igreja da Senhora das Dores porque era muito pobre e tinha o vício de roubar. Um dia ganhou vergonha e resolveu pendurar-se pelo pescoço. Se bem me lembro das conversas que tive com ele, e foram muitas, só um milagre o podia salvar daquela vida triste e miserável que ele próprio lamentava com lágrimas nos olhos.
Na última Sexta-feira Santa, ao olhar a imagem de Nossa Senhora das Dores, percebi no seu olhar de vidro que ela é incapaz de fazer um milagre e por isso cumpri a tradição: não vou em procissões. Nem morto.

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