quinta-feira, 18 de novembro de 2010

Pela porta pequena

Amo e sou amigo de dois jovens em fases diferentes da sua integração no mundo dos adultos. Um está na idade de entrar na universidade e começou agora a aprender a tocar viola. Vi um ensaio recentemente, a um domingo à tarde, e revi-me há muitas décadas a fazer o mesmo embora em toda a minha vida nunca tivesse agarrado numa viola. Mas sonhei fazer aquilo tantas vezes quando era jovem que acho que, em sonhos, toquei viola para todos os meus amigos.
O outro, que é outra, acabou agora a universidade mas teve que ir trabalhar para a “estiva”. Ouvi-a contar num grupo de amigos como é viver com o ordenado em atraso, vendo os colegas de trabalho a insultarem o patrão quando ele passa de fato e gravata pelo meio da fábrica, mandam à fava o seu chefe e fumam um “charro” com a maior das descontracções atrás de uma máquina que não se cansa de parir objectos azuis. Tudo para suportarem melhor, ou “na maior”, a desilusão do ambiente fabril, o enjoo da falta de dinheiro em casa para os bens de primeira necessidade, e a angústia de terem que viver num país onde já nem os empresários conseguem ser heróis.
Confesso que amo os dois jovens amigos com a mesma intensidade e sinto-me rejuvenescido a viver com eles a alegria de os ver aprender a tocar viola, ou a viverem a surpresa, ou a tristeza, da entrada no mundo do trabalho pela porta pequena.
Um dia no jardim público da minha terra, frente à minha casa, ouvi uma mulher responder ao pedido de uma outra que a convidava a sentar-se no banco do jardim enquanto o Centro de Saúde não abria portas. “Ò mulher, eu vou lá sentar-me nesse banco de jardim. Que vergonha!” Reproduzo as palavras como ela as disse, e parece que a estou a ver de saia e blusa preta, com um carrapito igual ao que a minha avó Ilda usava, com umas mãos grossas à frente da barriga penduradas num saco preto a imitar pele de cobra.
Eu mesmo, aos 18 anos, embora fosse companhia dos copos e das noitadas de gente da média burguesia, muito mais velha que eu, não entrava nos dois principais cafés da minha terra, por achar que não tinha estatuto para isso. Foi a minha consciência de classe, seja lá isso o que for (os dias de hoje já não são o que eram) que me impedia naturalmente de entrar naqueles espaços que, alguns anos depois, já frequentava sem quaisquer constrangimentos.

Nota: José Saramago fazia anos no mesmo dia em que este jornal foi fundado. O documentário José e Pilar, que está aí para todos vermos e revermos, tem uma cena em que José avalia, de soslaio, o traseiro da sua mulher. Como vi escrito por aí nos jornais, nestas últimas semanas em que me perdi a viajar, “amar é olhar a bunda da nossa própria mulher”.

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