quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

O medo de viver

Há meia dúzia de semanas, no caminho de casa para o trabalho, vi um objecto estranho no meio da estrada que me despertou a atenção. Parei o carro e fui ver. Olhei à minha volta e não vi pessoas, nem valados, nem árvores ou arbustos onde alguém pudesse estar escondido a vigiar-me. Aproximei-me do objecto e apanhei do chão uma arma de caça, aberta, com dois cartuxos vermelhos à vista. Demorei alguns segundos a tomar uma decisão. Levo ou deixo ficar. Optei por meter a arma na caixa do carro e segui caminho. Cheguei ao meu posto de trabalho e envolvi-me em tantos assuntos que esqueci a arma. A meio da tarde fez-se luz. Partilhei o achado com um colega de trabalho que é caçador. Ouvi o que mais temia. Cuidado com armas de caça Joaquim Emídio. Pode ser uma armadilha. O melhor é desfazer-se dela e esquecer o assunto. Ouvi e sosseguei. Ainda faltavam algumas horas para o fim do dia.
Quando voltei ao carro para fazer o caminho de regresso a casa já tinha tomado uma decisão. Vou deixá-la algures no mesmo lugar onde a encontrei. Enquanto fazia o caminho mudei de ideias. Vou ao posto da GNR mais próximo e entrego a arma. Quem a perdeu vai ouvir das boas e aprender a lição. Não se perde assim uma arma como quem perde o juízo, pensei. Afastei as más lembranças que tenho de caçadores que atiram a tudo o que mexe à sua volta, sem respeito pelos animais e pelas pessoas que circulam nas propriedades, e resolvi parar o carro apenas quando chegasse ao destino.
Entrei no posto e dirigi-me ao agente de serviço. Contei o que se tinha passado e pedi-lhe para ser ele a vir buscar a arma ao porta bagagens. Depois de uma identificação que demorou cinco minutos em mais cinco cheguei a casa.
No dia seguinte recebi um recado a meio da tarde. Tinha ligado um senhor que se identificou como o dono da caçadeira. E agradeceu tanto ao telefone que se largou a chorar. Contou que não tinha dormido nada na noite anterior e que só imaginava a arma nas mãos de alguém que assaltasse ou matasse. Voltou a ligar no dia seguinte e falou comigo. A conversa repetiu-se. Ouvi contar o seu drama com atenção. Comovi-me ao ouvi-lo dizer que era um caçador apaixonado, que fazia da caça um desporto. Por fim lá contou como perdeu a arma e até quase que acertou no metro da estrada onde eu a encontrei.
Convidou-me para almoçar com amigos caçadores. Disse-me que queria dar-me a conhecer para falar da minha atitude. Não sei nada sobre caça, nem sobre épocas de caça, e só me lembro de matar pardais à pedrada quando era criança. Mas imagino que o convite deve estar a chegar. Precisava de contar esta história para desabafar. A arma só não está no fundo do Tejo porque ao longo dos anos tenho vindo a perder o medo de viver. Não sei se é bom se é mau. Mas esta é a verdade. Nem o agente da GNR me assustou quando disse que a arma podia ter sido usada num assalto que, agora, era uma questão de eu esperar para saber. O resto que ouvi não conto porque já seria conversa a mais.

Sem comentários:

Enviar um comentário