terça-feira, 6 de dezembro de 2011

Memorial da Spalil


A mulher que ao longo da minha vida vigiou o meu sono durante menos tempo é aquela que recordo mais vezes.
Com dez anos, num início de turno nocturno, na fábrica de tomate da Spalil, caí de costas, desamparado, de uma altura de cerca de dois metros. Estava no cais a dar caixas de tomate aos homens que as despejavam na linha. Sem saber como nem porquê caí no chão como um passarinho sem asas. Como os turnos começavam à meia noite, e nessa altura não havia serviços de urgência, levaram-me em braços para um canto da fabrica, deitaram-me em cima de uma manta e puseram uma mulher a tomar conta de mim. Lembro-me que vomitei três ou quatro vezes durante a noite; que a mulher me tratou com carinho, e, como não preguei olho, tenho a memória física dela assim como de todas as conversas das pessoas que, nessa longa noite, passaram por lá para saberem como é que eu estava de saúde.
De manhã, o senhor Manuel Barriga, que ainda é vivo e vende saúde, foi comigo num carro da fábrica para Torres Novas onde consultámos um médico. Nunca soube se fiz traumatismo craniano. Lembro-me do médico ter feito algumas recomendações mas ainda hoje devem estar dentro do saco roto para onde ele as mandou. A crer na minha falta de juízo (embora nem sempre) de certo que fiz um traumatismo qualquer. Mas os tempos eram outros e quem aos dez anos não resistisse a uma queda, mesmo de costas e de dois metros de altura, não era homem nem era nada.
O “Pégancho”, que entretanto desapareceu da Chamusca, andava a tentar namorar a mulher que nessa noite me meteu a mão por baixo da cabeça para eu vomitar com mais conforto. Foi a minha visita mais regular. A “barroa”, como se chamava naquele tempo às mulheres do norte que vinham trabalhar para o Ribatejo, era uma mulher silenciosa, sofrida, ainda jovem mas com aspecto de quem já tinha nascido velha. O “Pégancho”, nessa altura já na casa dos trinta, se bem me lembro, só queria uma mulher que o ajudasse a endireitar o pé.
Lembrei-me dele e dela recentemente ao ler o Memorial do Convento de José Saramago. Se Saramago tivesse conhecido o Pégancho e a Maria, na altura em que eu os conheci, de certo que encontrava muito mais cedo a inspiração que o fez criar a Blimunda e Baltazar personagens centrais do livro Memorial do Convento.

Sem comentários:

Enviar um comentário