quarta-feira, 26 de março de 2014

Envinagrados

Um homem com cerca de setenta anos ralha-me junto ao expositor de jornais de uma grande superfície comercial por eu estar no seu caminho e sugere, entre dentes, que eu sou um pendura (eu e mais cinco ou seis que fazem o mesmo que eu). E é verdade. Enquanto ele, aparentemente, compra o jornal xpto diariamente como quem compra uma pastilha ou um maço de cigarros de determinada marca eu folheio jornais, portugueses e estrangeiros, e vejo se me interessam, se não estão todos impressos com as mesmas notícias trabalhadas  em cima de informação já recalcada dos últimos dias.
Mando-lhe uma boca na desportiva dizendo-lhe que as pessoas envinagradas devem ir ao médico ou morrem a meio do dia; entretanto ele exalta-se e responde que acabou de vir do médico mas dando as costas e mostrando que é só brigão de palavras.
A coisa ficou por ali mas da provocação do homem retirei uma boa lição; lembrei-me que também eu ando envinagrado há anos e que se não me curo ainda vou morrer azedo. E no entanto tenho escrito na testa o seguinte ditado; para ajudar a resolver um problema não há nada melhor que um dia a seguir ao outro com uma noite pelo meio. JAE

quarta-feira, 12 de março de 2014

Dizem que Deus existe

O meu avô Manuel Emídio trabalhava há cinquenta e muitos anos a roçar mato nas propriedades da Casa Amaral Netto. Eu era seu companheiro de jornada. Saíamos de casa de manhã bem cedo, ele a pé e eu em cima da albarda da burra, e íamos pela charneca adentro para onde era preciso roçar o mato para proteger a floresta dos fogos. Lembro-me como se fosse hoje. O meu avô cortava em média cerca de setenta paveias de mato pagas a meio tostão, que ao sábado de cada semana ia receber ao escritório da Casa perante o meu olhar luminoso por estranhar que lhe pagassem sem conferir. No dinheiro que o meu avô recebia havia uma pequena parte que era minha. Embora passasse o dia com o olhar espantado perante a beleza das saramântigas, havia uma pequena roçadoira para mim de forma a que eu também pudesse ganhar o meu dia. O meu avô não queria mas eu fazia questão de cumprir as seis ou sete paveias por dia.
Partilho esta lembrança na semana em que morreu a Anita do José Ceboleiro. O esgoto que sai da casa de família para a rua está a metro e meio abaixo do chão de barro e uma boa parte fui eu que a abri com lágrimas nos olhos porque a picareta faz doer a carne e os ossos.
Sou muito feliz ao recordar os tempos antigos e se fosse possível registava todos os dias as memórias da vida na infância e fazia um monumento de palavras à Anita do José Ceboleiro, que acabou de morrer, mas também à Júlia do António Serôdio que está no Lar da Misericórdia da Chamusca e parece uma alma do outro mundo a sofrer o que ninguém merece. E ainda dizem que há Deus!! JAE

quarta-feira, 5 de março de 2014

Os fracassos no trabalho

A nossa vida é cheia de fracassos e de oportunidades perdidas. Por cada instante de felicidade batemos cem vezes com a cabeça na parede. Por cada noite bem dormida acordamos mil vezes a meio da noite. Sou dos que colecciona fracassos como alguns juntam dinheiro. Tenho um álbum cheio de más recordações como muitas famílias têm gavetas cheias de fotos das crianças, das férias, das viagens, dos casamentos e baptizados.
De fracasso em fracasso vou vivendo e também festejando, quando o rei faz anos, a alegria de algumas pequenas mas significativas felicidades que no entanto podem durar apenas alguns minutos ou segundos.
Um dia viajei atrás de um sonho para conhecer um dos maiores fracassos da minha vida. Meti na cabeça que conhecia a pessoa ideal para realizar um projecto de trabalho e fui estrada fora, noites e dias, até conseguir encontrar-me com o figurão que é dono deste mundo e do outro, tem asas nos braços e umas pernas tão altas que dão para atravessar o Atlântico com uma passada. Quando chegou a hora de me sentar à volta de uma mesa para comer filet mignon e depois fazer a digestão da comida e de todas as palavras que levava no bucho, pesadas e afiadas como pedras na vesícula, falei, falei, falei até me doerem os queixos. A primeira vez que me calei foi para ouvir: “Joaquim, já me deste meia dúzia de boas ideias; só para ouvir tudo isso que partilhaste já valeu a pena o nosso almoço, é um êxito essa tua ideia. Não a contes a mais ninguém por agora que eu quero pensar no assunto”. Foi até hoje. Saí de casa para ir à caça de elefantes e fui caçado feito um coelho. JAE