quinta-feira, 17 de setembro de 2015

Os sírios, os moçambicanos e os ribatejanos

Há cerca de dez anos fiz uma viagem a Moçambique para visitar a cidade de Nampula. Dormi uma noite no melhor hotel da cidade que tinha lençóis da cor do carvão, um velho e ferrugento regador como chuveiro instalado num cubículo onde mal cabia um homem. Era ainda um hotel que passava factura mas sem número de contribuinte. Em oito dias comi mais lagosta que em toda a minha vida. Tive uma boa recompensa: sofri uma diarreia que se manifestou em início de viagem numa carrinha 4X4, em estrada de mato, numa distância de mais de 300 quilómetros. Posso dizer, com certeza, que foram as 24 horas mais difíceis da minha vida de viajante.
No último dia da nossa estadia em Nampula fomos almoçar à mata, no meio de uma pequena aldeia, e comemos da panela dos nativos. Éramos cerca de uma dúzia de pessoas e do que me lembro ninguém ficou chocado com a triste realidade que ainda hoje me azeda o espírito. Duas mulheres jovens passeavam entre nós com dois filhos presos à cintura com mais moscas no rosto que abelhas à volta de um cortiço. Das duas ou três vezes que fiz das mãos abanos as moscas nem abriram as asas. Estavam literalmente em cima de rostos quase cadáveres e em vez de moscas pareciam carraças. Não guardei as feições das crianças mas guardei as imagens do sono profundo em que pareciam mergulhadas como se o colo das mães fosse o lugar mais seguro do mundo. De verdade era apenas uma cintura onde as passeavam, já insensíveis à dor e à proximidade da morte.
Lembrei-me deste triste episódio quando alguém muito recentemente sugeriu que perguntássemos aos presidentes das nossas freguesias rurais como é que eles se estão a preparar para o acolhimento de refugiados da Síria. “Era interessante saber como é que o presidente da Junta da Azinhaga, da Moçarria, de Envendos ou do Chouto, lugares onde até as moscas têm melhor vida que as cigarras, se preparam para a ajuda humanitária.” 
A minha convicção é que não se preparam nem têm como se preparar. Alguns até são responsáveis por centros de apoio a crianças e a velhos mas nenhum tem orçamento ou instalações para acolher refugiados. E não vale a pena dourar a pílula; se os refugiados sírios precisarem dos ribatejanos para se livrarem da miséria e da guerra vão ter que aprender rápido a cavar terra para batatas. 
Não sou retornado mas vivi na época o drama de alguns retornados das antigas colónias. De boa vontade e de coração aberto não me importaria de ajudar a acolher crianças moçambicanas, ou sírias, que morrem de fome e de doenças de que já ninguém se lembra em Portugal. JAE

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